Dra. Luciana Nobile

“A mulher mais velha não podia conversar com a moça solteira sobre abortamento. Entre mulheres casadas de classe sócio-econômica mais elevada, o abortamento, quando da gravidez indesejada, era ocorrência relativamente comum e não era considerado pecado. O pecado consistia em contar à moça solteira sobre o abortamento, dando informações sobre parteiras e/ou médicos liberais .”
(Danda Prado, autora de “ESPOSA, a mais antiga profissão”, editora Brasiliense)

Pessoalmente, ao longo do exercício da medicina em clínica privada, conheci muitas mulheres que haviam interrompido a gestação em seu início, sempre com o auxílio de médicos. No início me espantava com o fato de que mulheres mais velhas já adotavam esse recurso como um meio de contracepção, quando na falha de outros métodos. Fazia parte de meu imaginário puritano que mulheres de gerações anteriores à minha, sendo católicas, conservadoras, não adotariam tal prática, já que a igreja católica é ferrenha na luta contra a liberdade da realização do abortamento.

Com formação cristã, ainda tenho alguma dificuldade para lidar com essa questão do abortamento provocado. Por outro lado, não me esqueço de meus tempos de pronto-socorro no Hospital das Clínicas da FMUSP, quando chegavam meninas ou mulheres maduras, muitas vezes chefes de família, mantenedoras do lar, com quadros infecciosos graves, muitas vezes irreversíveis, decorrentes da tentativa de provocar o aborto.

Ouvíamos tantas histórias sobre qual o “método” empregado para tentar o abortamento, por vezes das próprias mulheres e outras vezes dos médicos assistentes mais antigos. Agulhas de tricô, talos de plantas, contaminação uterina por fezes, etc. Eram pobres coitadas sem qualquer acesso à assistência médica, que muitas vezes negavam qualquer indução do abortamento, até a morte, por medo de sua própria segurança ou para proteger quem as ajudara.

Admitidas no hospital, em enfermaria ou UTI, internos e médicos residentes, sob a supervisão de assistentes mais graduados, tudo faziam na esperança de mantê-las vivas, permanecendo ao seu lado noite e dia. Lutávamos contra perfurações uterinas, hemorragias e infecções, quadros sépticos, falência de múltiplos órgãos, etc. Mas algumas morriam…

Óbitos evitáveis, vidas que poderiam ter sido salvas sendo desperdiçadas, enfermidade passível de prevenção! E a mortalidade materna decorrente de abortamento é ainda presença constante em países que fingem não existir carência de orientação contraceptiva e assistência médico-hospitalar à mulher pobre que decide pelo abortamento, diante da gravidez indesejada ou impossível.

Daí ter começado, desde a época da Residência Médica, a defender o direito legal da mulher decidir pelo abortamento. Reconheço o quanto difícil e conflitante esse tema seja para muita gente, porque para mim também não é tranqüilo.

Entretanto, sem hipocrisias, a realidade que existe em países em que o abortamento não é legalizado é a da mulher pobre que morre de infecção ou hemorragia, em casa ou em algum serviço público, e a da mulher com maior poder aquisitivo ou intelectual, que tem o seu procedimento adequadamente assistido.

Fosse o abortamento legalizado, ainda assim pairaria entre muitas a ansiedade, a dor ou o sentimento de culpa pela resolução assumida. Nenhuma mulher escolhe fazer o abortamento por prazer ou diversão. Sempre é uma decisão complexa, muitas vezes solitária, sem qualquer apoio do companheiro ou da sociedade.

A clandestinidade também paira como um peso, reforçando o sentimento de culpa.

Ouço discussões acaloradas sobre a legalização do abortamento, daqueles que radicalmente se opõem, parece-me que até com certa raiva, como se a mulher sempre fosse responsável ou culpada pela gravidez indesejada ou inoportuna.

No Brasil, atualmente, é o abortamento permitido, por lei, exclusivamente diante do estupro e quando a gravidez é de risco tal que a sua continuidade represente ameaça de vida para a gestante.

Mesmo que não fosse legal diante da segunda situação, que médico em sã consciência deixaria de fazer o abortamento e permitir que a mulher morresse? De qualquer maneira, nessa situação, de ocorrência excepcional, o feto não teria uma oportunidade de viver, pois sem mãe não existe a gravidez.

Determinar qual a vida é mais importante, se do feto ou da mãe é uma questão de formação individual, que para mim parece indiscutível, em que a vida da mãe sempre vem em primeiro lugar. A idéia contrária, a mim parece detestável e amoral.

Hoje discute-se, no Brasil, a questão da legalidade do abortamento induzido diante da anencefalia, em que a massa encefálica do feto é virtual. Em outras palavras, quando o concepto sobrevive, sua vida extra-uterina não passa de algumas horas ou poucos dias. Quem tem o direito de decidir sobre o abortamento nessa situação, que não seja a própria mulher que vive os sentimentos dramáticos da questão?

Mas o tema legalização do abortamento deve ser estendido para outras circunstâncias, para todas as circunstâncias em que o abortamento é desejado por aquela que está grávida. Deve entrar na pauta também até que época de gestação deve ser permitido a sua realização.

Fetos anencefálicos, síndrome de Down, malformação cardíaca complexa… Existem milhares de diferentes tipos de alterações na formação fetal. Os avanços na área de medicina fetal são excepcionais, permitindo, nesse mesmo boletim, que se proceda cada vez mais precocemente ao diagnóstico dessas malformações.

De que vale a medicina fetal, se diante de um diagnóstico a mulher fica atada à sua situação? Se o abortamento é ilegal, então devemos impedir o estudo e o ensino da medicina fetal, coibir a pesquisa, atrasar a evolução?!

Reconheço que essa metodologia é para poucos, não se trata de recurso de acesso democrático, mas a idéia não é de estender o atendimento a toda a população? Andaremos para frente na ciência ou abdicaremos dela?

A legalização do abortamento não determina que todas as mulheres com algum tipo de malformação fetal sejam obrigadas a abortar. A legalização serve apenas para que aquelas, principalmente de menor poder aquisitivo, possam ter a opção de proceder ao abortamento em condições salutares.

A legalização do abortamento provocado facilitará a vida de quem fizer essa opção, mas não interfere na daquelas que são contra.

Se eu não tenho tranqüilidade, como profissional, de exercer a prática do abortamento provocado, não serei obrigada a fazê-lo; sempre existirão obstetras com formação mais liberal, preparados para o procedimento.

Esse é apenas um aspecto da questão da legalização do abortamento.

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